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O Lugar da Imagem
16 de novembro de 2004. Minha câmera digital portátil emerge no almoço coletivo do regime fechado da APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – de Itaúna (MG), uma oportunidade para o jogo rápido do registro e da manipulação de retratos: empresto a câmera para os detentos, que posam e se intrigam com a revelação prévia das suas imagens na tela do corpo da câmera. Um detento tira várias fotos nossas que por algum motivo não aparecem na memória da máquina. Vejo o que aconteceu: ele dizia repetidamente que a foto tinha sido tirada, mas ela na verdade não tinha sido gravada. Contudo ele tinha toda a razão: era lógico que a foto existia, pois ele a tinha visto, capturada do mundo, no seu ato, mesmo que por poucos segundos, dentro da tela da câmera; ver significava a existência inquestionável da imagem.
A câmera: máquina de captura, meio de transporte da imagem, caixa ilusionista, lugar onde finalmente me refugio como um olhar externo a mim mesma. No vídeo-documentário, ela é o veículo de tradução do espaço vivido. Entretanto, há um problema. A simples presença da câmera já estabelece uma distância, duas territorialidades e uma linha de fronteira. A distância define as duas territorialidades: somos seres do lado de fora e a espontaneidade do contato fica ameaçada pelo dispositivo de captura. A fronteira, por sua vez, é a linha incerta da tela da câmera onde tudo pode acontecer e ao mesmo tempo tudo pode se perder: a vivência navegará por meios técnicos e será transformada – ou reduzida – finalmente em imagem.
Fomos visitantes bruscos: estávamos ali para ver e ouvir. Conhecíamos os projetos, mas não as suas muitas vozes e os seus protagonistas. E havia muitos para falar, para além dos arquitetos. Buscávamos uma voz coletiva a ser construída com a colagem dos fragmentos particulares. Deambulamos colhendo as imagens e os sons. Ao final, longe dali, traçamos a partir do nosso percurso o mapa do lugar sob os nossos olhos. Mas na hora tudo aconteceu sem planejamento. Um levava ao outro, logo ali. Apenas nos deixamos ir. Como andar é, ao mesmo tempo, leitura e escritura, sabíamos que construíamos, pouco a pouco, um texto sobre o lugar. Não propriamente uma ficção, mas uma remontagem. Olhamos o que esperávamos encontrar, mas havia muitas surpresas. Havia conjunturas imprevisíveis e relações fugazmente íntimas. Esquecemos a distância, acho que entramos, por mais que as nossas origens estivessem lá fora. A experiência da presença parece se distanciar da fotografia para se aproximar do relato. A câmera de vídeo, acoplada ao corpo, caminhava com o desejo de chegar a ser quase discreta. Quem sabe assim o mapa-relato se concretizaria no documentário: uma narrativa de corpo presente.
Mesmo sabendo de todas as questões inerentes ao vídeo-documentário, propusemos fazer esse conjunto de filmes curtos, originalmente pensados para a exibição em TV aberta, principalmente como procedimento de pesquisa: para além da explicação do projeto e das imagens fotográficas expostas e impressas no livro, queríamos freqüentar para poder captar os traços da relação que se deu nos meandros do projeto. Registrar a história da negociação, do debate, do lugar em processo de transformação com a interferência de agentes exteriores que resolveram deixar de lado as demandas arquitetônicas previsíveis e enfrentar as polêmicas do campo expandido.
Como campo expandido queremos falar daquelas zonas urbanas onde um diálogo foi iniciado, um debate aglutinou cidadãos, instituições e profissionais e um processo de viabilização – muitas vezes, no seu início, ainda não contemplado por leis vigentes – traçou o seu caminho inédito e aberto ao aperfeiçoamento. Iniciativas de atuação criativa e politizada, no sentido mais arcaico de polis. O que um saber arquitetônico pode contribuir para uma prática urbana, formal ou informal, e o que isso gera para a cidade em seu conjunto? Os quatro vídeos tratam da tentativa de captura desse ambiente de potencial mudança, seus insucessos e seus êxitos, através de múltiplas vozes: as pessoas do local, os arquitetos, advogados, atores, diretores, estudantes, agentes públicos e institucionais. Os vídeos constroem, frase por frase, o murmúrio da história de uma relação.
30 de novembro de 2004. Da janela do apartamento do 1º andar do edifício vizinho, uma senhora toma sorvete e olha o espetáculo teatral logo abaixo. A TV está ligada no apartamento. Ora ela olha para a novela, ora para o teatro. Por fim escolhe a imagem já familiar da novela e os problemas domésticos. Talvez o sorvete tenha acabado e aquilo era apenas uma distração da temporalidade de um sorvete; talvez o teatro nas palafitas dos prédios vizinhos, iluminado e construído com intenções efêmeras mas minuciosamente cenográficas, espaço privado feito subitamente público, seja para ela apenas mais uma imagem entre tantas. Mais uma janela, mais uma tela plana. Arquitetura não parece interessar a ninguém mais na cidade, exceto aos próprios arquitetos. Não é estranho? Não é radicalmente paradoxal?
Renata Marquez